Da Amizade ao Amor

09-12-2013 20:12

Da Amizade ao Amor

 

Olhando pela janela, Samuel podia observar a imensidão daquele céu, fazia já algumas horas que tinha embarcado, em breve chegaria ao seu destino. O que o esperava ali? Na mala trazia os poucos pertences que lhe restavam, na alma trazia todos os sonhos do mundo. Um misto de emoções se apoderavam dele, chegaria sozinho, numa terra estranha, tinha apenas o contacto de um familiar, que ele, aliás, nem conhecia, mas sabia ser tio de seu pai.

Pela janela, olhando as nuvens, e o mar, em baixo, lembrava a sua infância, a sua feliz infância, junto com seus irmãos. Depois veio a guerra, essa tirana infame que rouba tudo por onde passa, nada escapa do seu alcance, morte, desolação, dor, sofrimento, caos, podridão…

Samuel, agora com 28 anos, lembrava os pais, mortos na guerra e os irmãos dos quais não sabia nada, pois, assim como ele, tinham sido levados para campos de refugiados. Estariam eles vivos? Estariam eles bem?

-Precisa de alguma coisa Senhor? Veio perguntar-lhe a hospedeira, tirando-o por alguns instantes do seu “mundo” das lembranças.

-Não, obrigado. Está tudo bem! Respondeu.

Já faltava pouco para aterrar em Portugal, país que não conhecia, apenas de ouvir falar. Conheceria o seu tio e iniciaria uma vida nova, pretendia continuar os estudos, que ficaram adiados por forças das circunstâncias. Moçambique, a sua terra, não lhe dera essa oportunidade.

            Numa certa aldeia transmontana, o trabalho era escasso, então, uma jovem habitante de seu nome Beatriz, teve de se aventurar na cidade, sem ninguém que a orientasse, sem amigos nem conhecidos, pois, todos os que conhecia tinham para trás, pelas Beiras do Interior do Norte Transmontano. Vivia-se num mundo qualquer coisa, como nos tempos medievais. A própria aparência destes povoados assim o demonstrava. Beatriz desejava conhecer mais, saber mais, desejava buscar uma vida mais digna, porque lá se vivia na “escuridão”, apenas quebrada pelos raios de luz… onde e como tinha o acesso à informação, à cultura? Só havia um caminho a seguir, pensava ela: deixar a aldeia e tentar a vida na cidade, optando pela grande Lisboa. Outras cidades da província, próximas da terra de origem, eram também elas tentadas mas, como maior ponto de atração era a capital, na altura. Assim, a pobre Beatriz, iria enfrentar o drama da imigração e a separação dos seus.

            Por lá, Beatriz, jamais encontrava a palavra “meiga” da mãe ou o sorriso inocente e belo dum pequenino irmão, que deixara para trás com quem brincava, nem as carícias ternas dos seus avós.

            A verdade é que não era apenas a Beatriz a iniciar-se neste percurso… muitos jovens desfavorecidos daquela aldeia, por todas as condições miseráveis sócio - económicas em que se deparavam e se arrastavam de gerações em gerações, procuravam longe da terra e da Pátria que os viu nascer, uma vida mais digna para eles e para os seus.

            Samuel, acabado de chegar de Moçambique, andava completamente desorientado no aeroporto, salvo poucos minutos depois pelo tio que o levou depois para casa. Ficava num dos bairros sociais na cidade de Lisboa. No dia seguinte fora logo procurar emprego, um mundo novo pairava sobre a vida deste homem… tudo para ele era novidade, coisas que nunca tinha visto ou sonhado existir, um mundo mágico, tudo para ele era fantástico e deixava-o deslumbrado mas, ao mesmo tempo, perdido, sem rumo, sem saber por e para onde ir… mas… aliás, já seria uma grande vantagem para Samuel, saber o que procurava ou o motivo que o trouxe a Portugal!

Todos nós procuramos numa determinada altura da vida por algo mas, nem Beatriz nem Samuel naquele mesmo dia encontraram o que procuravam, aliás, foi outra coisa que os encontrou, contra todas as expectativas, sem aviso, contra qualquer preconceito, nasce a coisa mais bonita, mais ardente assim que, Samuel e Beatriz se cruzam na cidade… o que vão encontrar é uma paixão ardente, talvez por serem duas pessoas que procuram o seu lugar no mundo, sem amigos, nem ninguém para os apoiar nesta fase da vida, talvez por serem ao mesmo tempo tão parecidos e tão diferentes, quer pelas suas origens, quer pelo passado completamente diferente. O certo é que algo de mágico aconteceu assim que cruzaram caminhos e olhares, coisa que não tem justificação científica, não tem razão conhecida, talvez seja o destino, um anjo da guarda… ninguém sabe… nem todos têm a sorte de saber o que é o amor “à primeira vista”!

Samuel ganhou coragem e voltou atras no seu caminho. Ele tinha de saber o nome de tamanha beleza que se havia cruzado com ele. Um nome, uma morada algo que lhe desse a possibilidade de a procurar. Dando meia volta e encarando a jovem de frente e olhando-a bem fundo nos seus olhos disse:

- O meu nome é Samuel e nunca vi tamanha beleza como a tua.

Beatriz esboçando um sorriso tímido e ao mesmo tempo apaixonado disse-lhe:

- Olá Samuel, eu sou a Beatriz…

Nessa tarde passearam pela cidade horas e horas a fio, trocando histórias, sorrisos tímidos e sonhos de um futuro melhor. Samuel e Beatriz estavam fascinados um com o outro. Nunca pensaram que podiam encontrar alguém tão especial com tantos sonhos.

Essa tarde transformou-se em dias. Dias de conversas e de uma crescente paixão. Até que Samuel decidiu apresentar a sua namorada ao tio que o acolhera em sua casa com toda a amabilidade do mundo. Joaquim, tio de Samuel, recebeu a bela jovem como se fosse sua filha. No entanto avisou-se para a possibilidade de esta relação ter de passar por fases muito complicadas por causa das diferenças que tinham e que, os pais da bela Beatriz poderiam não gostar da ideia da sua filha namorar com um moçambicano.

No final de um banquete recheado de produtos típicos de Moçambique e, de toda a afinidade que se criou na relação entre Beatriz e o tio de Samuel, Samuel achou que era o momento indicado para pedir em casamento Beatriz. Claro que esta aceitou imediatamente, mas existia uma prova a ser superada. Pedir a mão de Beatriz aos seus pais.

Beatriz e Samuel, deixaram passar um mês até tomarem a decisão do momento indicado para este feito. No dia 17 de Novembro de 1999, o jantar concretizou-se. Samuel, vestiu o melhor fato que um amigo lhe emprestou, pois as suas possibilidades financeiras no momento eram escassas para puder comprar um fato digno à altura, para não falar que o pouco dinheiro que tinha, andou a juntá-lo durante vários meses para que se pudesse casar com Beatriz.

Numa visita à aldeia, Beatriz levou Samuel para que este conhecesse os seus pais e irmão, concretizando de forma efetiva o pedido de casamento. Em casa, Beatriz vestiu o seu melhor vestido, transparecendo preocupação com o que poderia se suceder naquele jantar, visto que, o pai não tinha demonstrado grande entusiasmo e felicidade por saber que a filha namorava com um homem de raça negra. Por outro lado, a mãe andava num frenesim a preparar o jantar, para que tudo fosse impecável e admirável pelo noivo. O pai limitava-se apenas a ver televisão, acreditando no seu íntimo, que esta relação terminaria ainda hoje.

Samuel nesta visita ficou hospedado numa estalagem. Quando chegou a hora do jantar, Samuel apresentou-se à hora em ponto que tinha sido combinado. Os cumprimentos foram um tanto ao quanto frios por parte do pai e, cautelosos por parte de Samuel, pois este não queria que os seu futuros sogros tivessem nada a apontar, que permitisse impedir este casamento. Tal, como a apresentação, também o jantar foi bastante reservado de ambas as partes, tendo sido apenas colocadas algumas questões por parte dos pais a Samuel, que se enquadrava na sua profissão, o que fazia nos tempos livres e o que gostaria de fazer no futuro.

Num instante, chegou o momento indicado para que o pedido fosse feito. Depois do jantar, num momento de toma de café, Samuel pensou que teria de ser nesse momento ou perderia a coragem. Assim, começou:

- Sr. Dinis, gostaria de falar consigo e com a sua esposa, com o intuito de pedir a mão da vossa filha em casamento, pois penso que é o momento indicado para tomar esta decisão.

Este pedido não foi bem aceite pelo pai de Beatriz, ao qual, de forma arrogante respondeu:

- De forma alguma permitirei que este casamento se suceda. Você não tem capacidades financeiras, nem habitacionais para receber a minha filha, para não falar que não passa de um simples moçambicano e preto.

O pai de Beatriz, apesar de ter aceitado este namoro, no seu consciente acreditava que este namoro não iria perdurar, devido às questões culturais. O facto de ter surgido este pedido, tudo o que acreditava tinha-se dissipado e, não era de forma alguma, o futuro que desejava para a sua filha.

 Beatriz, a chorar, disse a seu pai que ele não poderia impedir este casamento, que estava a ser racista e que o Samuel era o homem da sua vida.

- Beatriz, eu posso impedir este casamento e é isso que vou fazer. Estás proibida de te encontrar com este rapaz. Se por ventura me desobedeceres, ficas proibida de regressar a Lisboa.

Samuel, destroçado cumpriu com a ordem do pai de Beatriz, vagueando pelas ruas tristemente. Por outro lado, Beatriz também subiu para o seu quarto desolada com o sucedido, pensando numa forma de conseguir ficar com o seu amado.

Nessa noite, o pensamento de ambos cruzava-se no horizonte.

Como poderia um pai impedir o amor destes dois jovens? Foi então, que a Beatriz se lembrou de que a única forma de puderem ficar juntos era fugirem.

Mas eis que, durante a noite e já antevendo o futuro, uma vez que tinha conhecimento de casos idênticos, a mãe da Beatriz conversou com o marido e deu-lhe a entender que a sua atitude tinha sido completamente de uma pessoa racista e que a sua “Angola”, já tinha acabado em 1969!

Também lhe disse que se não autorizasse a Beatriz a ficar com quem ela amasse, a mesma, o iria odiar para sempre e a sua relação nunca mais seria a de pai para filha e sim de duas pessoas que iriam passar a ser estranhas uma com a outra até ao fim dos seus dias.

O pai da Beatriz, após meditar sobre o assunto e de perceber que efetivamente poderia perder a sua “filhinha” adorada que, com tanto amor e carinho tinha criado, decidiu então ir falar com os dois e dar a sua aprovação.

Após pedir desculpa a Samuel, o pai da Beatriz fez o rapaz prometer que jamais iria fazer a sua “bebé” infeliz e que, tudo faria para ultrapassar as vicissitudes que a vida iria trazer a ambos.

Depois de muitos abraços, sorrisos e lágrimas, lá conseguiram efetuar uma “festança” com o noivado dos dois.

Passados seis meses, os dois casaram na igreja da aldeia da Beatriz num casamento cheio de alegria e muito brilho nos olhos dos noivos.

Meses mais tarde, Samuel conseguiu prosseguir os seus estudos na universidade, assim como a Beatriz, ambos no ensino noturno.

São agora os dois professores, vivem em Coimbra e dão aulas na Escola Superior de Educação nesta mesma cidade.

Poder-se-ia dizer que viveram felizes para sempre, mas isso seria utopia. No entanto, pode-se dizer que são ambos felizes com a vida que levam e tem e, para daqui a três meses, nasce o primeiro “rebento” da sua união.