Terra Sonâmbula de Mia Couto
O escritor tem uma forma muito própria de escrever, inventa palavras e usa muitas metáforas. O livro retrata Moçambique num contexto de guerra civil, as personagens principais são um rapaz e um velho, Muidinga e Tuahir, que fazem de um velho autocarro incendiado a sua morada. Ao desfazerem-se dos cadáveres existentes no autocarro, reparam num outro cadáver na beira da estrada que transportava consigo uns cadernos.
Estes cadernos foram escritos por outro jovem rapaz, Kindzu, relatando a viagem que iniciou, tendo como objetivo tornar-se um naparama (figuras temidas pela população por serem uma espécie de exército de almas guerreiras, abençoadas pelos feiticeiros e que lutavam contra a guerra). A leitura destes cadernos permitem que a capacidade de sonhar e a esperança num futuro melhor se mantenham vivas.
Outras personagens vão saindo da leitura dos cadernos, reais ou fictícias, segundo a interpretação de cada leitor.
A luta pela independência e, posteriormente, a Guerra Civil são pontos fundamentais para o desenvolvimento desta narrativa, pois tais conflitos não são apenas de ordem política ou territorial, mas, acima de tudo, cultural.
O que o escritor pretende passar com a leitura deste livro é a cultura do povo moçambicano, assim como as suas crenças e costumes, e, sobretudo, a esperança num futuro melhor. O livro é chamado de “Terra Sonâmbula” porque os moçambicanos acreditam que a terra deambula enquanto eles dormem. Num cenário de guerra, a paisagem vai se transformando a cada dia, parecendo indicar que a terra é sonâmbula.
A preocupação do autor é resgatar narrativas orais e lendas de seu povo, para a sobrevivência da cultura moçambicana. Isto acontece através dos cadernos de Kindzu, cujos escritos revelam a infância do personagem, da família, mas também um país que vive questões dialéticas, tais como a miséria e a riqueza, a vida e a morte, a ambição e o desprendimento.
Ao lermos a obra de Mia Couto, somos apresentados a elementos culturais de Moçambique, tais como o “machimbombo” (“autocarro”, traduzido à página 205), um espaço de fundamental importância para a narrativa, pois é neste espaço que Muidinga e Tuahir encontram os escritos de Kindzu e é neste local que os dois conseguem abrigo em meio aos conflitos da guerra. Outro elemento, o “concho”, uma canoa, que na narrativa é o espaço pelo qual o pai de Kindzu voltaria depois de morto, representa o enriquecimento da tradição oral moçambicana.
Com relação aos espaços e seres mágicos, estes são apresentados a Tuahir e Muidinga à medida que os dois deixam o machimbombo e seguem à procura de seu próprio caminho, a própria estrada a ser percorrida. Essa caminhada é motivada pelos escritos de Kindzu que contém seres e estórias fantásticas, cuja paisagem nos é apresentada de forma poética e simbólica.
Terra Sonâmbula ganha um sentido importante ao longo da obra.
É aquela terra que não está a dormir e nem acordada, ela sonha em um ambiente onde o marasmo, a esperança do fim da guerra e a miséria própria da guerra se fazem presentes, assim resta aos habitantes sobreviverem.
É nesse cenário de guerra que aparecem pessoas que vagam famintas e onde a leitura de uma história pode ser um alento para sua sobrevivência. A partir da obra também podemos entender um pouco da história de Moçambique após a sua independência e das questões que são colocadas para um novo país e, porque não, para uma nova literatura que também pretende se libertar do julgo do colonizador.
Refletir sobre a memória traz um outro conceito: o tempo. Observa-se que a presença do mito numa obra literária desempenha uma função, revela uma visão de mundo. Em alguns casos, como na escritura de Mia Couto, a memória representa uma forma de resistência, apresenta-se como mediadora no percurso do pensamento sobre identidades cultural e nacional. Revela a capacidade de evocar o passado comum através do presente, como se a memória diária falasse ao leitor.
Entretanto, para se falar de memória na construção poética de Terra Sonâmbula, é necessário imiscuir-se um pouco em tal narrativa: trata-se de um percurso fantástico vivido entre as neblinas de uma cultura povoada de sonhos, de lendas, de ilusões e de feridas e cicatrizes de guerra. Sob esse prisma, Mia Couto constrói um projeto de repensar a sociedade moçambicana, tendo em mira que cria ficção a partir de uma condição real, transformando a leitura num ato socialmente simbólico.
O autor traz as camadas populares para o centro do debate e consegue demonstrar de que modo o campo literário se oferece como um espaço privilegiado para a discussão dos campos político, histórico e social, e não somente como um lugar de entretenimento.
Entretanto, não se pode esquecer que a memória, na obra do autor, assume também a dimensão coletiva e social, na medida em que revela as alegrias, as angústias e as vivências. O olhar é social e universal, busca a exatidão para além dos aspetos que ocultam a fragmentação do sujeito. Diz claramente, contesta o fingimento e tenta resgatar o valor da tradição oral de contar histórias.
A memória é o fio condutor da narrativa. Conforme as lembranças aparecem, os escritos vão acontecendo. É ainda pela memória que as convenções que permitem o fenómeno da significação do uso das línguas naturais se apresentam: os estados e processos que dão significado às coisas.